terça-feira, 18 de junho de 2019

Catafleuma ou Síndrome Catafleumática Atonal da Inverossimilhança

Catafleuma é um transtorno biofísico com consequências para o comportamento. Sua incidência é cada dia mais frequente e abrange casos em todos os continentes.  De causas desconhecidas, a doença tem sintomas que consistem em:

_Dependência de um tempo mínimo de 30 minutos diários de consumo de informações aleatórias na internet;
_Concordância e aceitação da veracidade das notícias e demais conteúdos colhidos na rede, o que leva o paciente a uma leitura difusa do que é ou não real na vida prática.
_Perda da capacidade de ter dúvidas e de resolvê-las sem o consumo de mais informação midiática.
_Mutação no cromossoma 14
_Prurido na virilha esquerda

A International Biofisical Diseases Association, sediada em Massachussets, EUA, estima que 113 milhões de pessoas de todas as idades tenham alcançado o estado crítico da doença em todo o mundo.
O tratamento envolve teorias polêmicas e fórmulas paliativas não conclusivas, o que aumenta a aflição dos pacientes que aguardam uma solução para seu problema.
Contribuiram Dra. Isa Joke e Dr. Arnon Sense e Silva

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Tutorial


(5:25) Ando tão cansado que vivo esquecendo as coisas. Hoje esqueci o sanduiche sobre a pia . Vou aproveitar a meia hora de almoço pra adiantar uns trabalhos. O problema é que quando eu adianto aparece mais. E o extra vai virando o mínimo do ponto de vista do Olavo. O Olavo ficou mais bobão depois que deram a ele o cargo de gestor de colaboradores. Implantou um pouco de cabelo e ficou parecendo com uma horta de cebolinhas. Mas ninguém ri mais do Olavo. Não porque ele não seja ridículo. A gente é que não tem mais tempo nem ânimo pra achar graça de nada. Vou morrendo de frio no aerotrilho. Faz três anos que não compro roupa nova e esse casaco já está caído. Mesmo todo mundo no trabalho estando na mesma situação, todo mundo repara. Fica chato.
Faltam dois black Fridays para o Natal e eu ainda estou pagando crediário do ano retrasado. Essa porcaria de censelular tem que mudar a bateria. O ship implantado no meu punho inflamou e afetou a célula de conversão de sal.  Sei não, mas isso deve bagunçar  as  minhas taxas de minerais. Tenho que corrigir isso porque o pessoal do RH está monitorando e o valor variável dinâmico do plano de saúde vai aumentar quando a empresa enviar o relatório de risco mensal.
(6:19)Vejo aqui no censeluar que já faz dois dias da polêmica sobre o Luciano Huck ter comemorado sua escolha para o Nobel de literatura com uma selfie no vaso sanitário. Gente, quanto tempo discutindo isso. Já deu. E daí que ele ganhou por um tweet de 82 caracteres e aquele argentino de quem eu não lembro o nome ganhou ano passado com um de 60?  Muito mais interessante é essa polêmica sobre Hitler, na verdade, ser negro e comunista. 
Já falei que minha bateria está fraca. Por isso o select bloc auditivo está fraco. Aí eu acabo ouvindo o som ambiente em vez do Jornal Nacional transmitido direto para meu hipotálamo. Alguém gritou ou algo assim. Aí aumentei o volume e tá melhor pra ouvir o JN.  Eu nem pedi o JN in Head. Veio grátis com o plano TOP do Alternative lives.  E eu ainda posso ser o Elimont dois dias na semana!  Sou fã do Elimont. Aquele gigante de três olhos e língua em forma de tentáculo bifurcado é HighTop.  Mas eu trocava isso por mais horas no YFiles para ver aquelas cenas de ponny play... Mulheres encilhadas como ponneys, puxando charretes me deixam com tesão por quase dois minutos.
Não sei se entendi bem a notícia.  Esse jornal está ficando sem graça mesmo.  Acho que eles já noticiaram que o primeiro Ministro se divorciou de novo pra casar com aquela apresentadora de 13 anos. Imprensa é foda. Todo mundo sabe que ela já tem 15 e está meio gordinha pro papel. O casamento com o premier vai dar um up na carreira dela.  Não sei que coisa o Jornal Nacional tem que fala tanto do primeiro Ministro. Esse Faustão não pára casado desde que fez 70 anos...
(6:44) Caraca! Chegou infoalerta  no meu implante pineal.  O cartão venceu há duas horas! Tenho que resolver essa bosta senão esse zumbido não vai parar e eu não vou mais nem ouvir o JN, nem acessar o Alternative lives Top, só o módulo básico em que só estão disponíveis as vidas de personagens femininos.  Que merda.
Estou atrasado. Vou descer do aerotrilho e pegar um Umbiliquer pra chegar mais rápido. Os motoristas hemofílicos trabalham com a maior eficiência com pagamento desmonetarizado.  A corrida deve dar uns 10 centímetros cúbicos de plaquetas e hemoglobina.  Tá valendo.  Essa coisa de resustentabilidade e reinvenção empreendatória é mesmo muito legal! Os caras do Umbiliquer estão acabando com o negócio dos caras da cooperativa que trabalhava por células de medula .
(7:00) Consegui pagar o cartão com novo crediário pelo censelular.  E cheguei na hora no trabalho.  Peraí. Meu passe está travando na porta. Diz aqui que eu estou... Que?! “Descontinuado”?    Uma mensagem foi enviada para meu aplicativo de auto empreendedor modular sustentável. Estão dizendo que eu tenho que pagar a taxa de investimento em prática e os direitos por usar o nome da empresa no meu perfil do FaceBible. Caramba! Como vou voltar pra casa?!  Meu passe cancela as passagens de ônibus. Isso vai travar meu crédito !
Agora eu não lembro mais em qual das Colônias da Maravilhosa Idade eu internei meus pais.  Não dá nem pra pedir ajuda.  Onde eu vou arrumar emprego agora com 24 anos?!   A teleinfo já foi avisada da descontinuidade do meu contrato. Cortaram o sinal!   Não consigo pensar enquanto ouço o barulho do ambiente!   Podia ligar para minha colaboradora afetiva. Mas eu a bloqueei quando ela disse que queria ser mãe...
Que que foi? Não. Não tem moeda não. Vai trabalhar!    Porcaria de infra-menor da rua! Esses vagabundos andam por aí nus e fedendo.  Que que eu tenho com a vida deles, cacete!?  E agora, porra? Nem vou poder ver minha série.  Deve ter algum tutorial pra explicar como é que faz. Deve ter... Precisa ter!

quarta-feira, 8 de junho de 2016

A Cigarrilha de Hipócrates

Corria a década de 70. E eu me orgulhava de ser a primeira turma da escola primária com o novo uniforme criado pela ditadura. Bem, me orgulhava do uniforme, não da ditadura, claro. Daquilo  não dava pra se orgulhar nem formando no pátio pra cantar "Eu te amo meu Brasil". Eu era feliz pelo uniforme de calça azul marinho e camisa branca de abotoar com o brasão da cidade no bolso em vez do tradicional “E.P.” que queria dizer “Escola Pública”.  Estudava de manhã. À tarde e como de costume, ia ficar com meus avós, que moravam na mesma rua.  Um dia, não lembro bem, minha avó teve de ir ao médico ou ao centro espírita, onde meu avô compunha pontos para os santos.  Os pontos do meu avô tinham palavras bonitas e eu gostava.  Se alguém se perguntar quem compõe pontos de terreiro, saiba que meu avô era um que fazia bem. Ninguém cantava direito porque as palavras eram difíceis para o entendimento do cambono e do seu Oliveira. Seu Oliveria era um que sempre cantava tudo errado. Mas essa história não é sobre meu avô, o centro e nem sobre seu Oliveira. Esses merecem uma crônica própria. Talvez a próxima.  A história começa num dia em que minha mãe saiu depois que eu cheguei da escola e me deixou na casa de sua tia avó que morava na mesma rua.  A mítica minha rua.
Fiquei comportado e sentadinho na varanda com a tia da minha mãe, como fui instruído.  Não aceitaria nada por educação, como instruído. E , sob hipótese nenhuma, devia aceitar água gelada. Minha mãe e meus avós acreditavam no poder devastador da água gelada sobre a saúde humana e animal.
Na varanda da tia da minha mãe (descobri depois que se chama tia-avó minha) fiquei ouvindo as histórias do neto dela e os acalantos admirados com que a senhora gorda de voz rouca borbulhante o tratava.  Eu entediado com as histórias do primo Serginho, que era um pouco mais velho que eu.  Eu sentado no chão imaginando quando minha mãe voltaria para me buscar, enquanto o menino sentado no colo da avó tagarelava.  Meus outros primos eram mais velhos, estavam com seus amigos e não podiam me salvar daquela chatice.  Uma hora, primo Serginho discursou algo como se fosse Castro Alves proclamando a independência e assim foi lido pela tia da minha mãe que eu também chamava de tia. Disse ele: “Vovó, eu amo a noite”. 
 Naquela época eu ouvia os sentidos pejorativos que a meninada da rua e meus colegas de escola davam às palavras “viado” e “bicha”.  Mas havia os sentidos de sensibilidade e delicadeza “exageradas” a que se referiam os familiares da bicha quando a tratavam à baixa voz de “um pouco efeminado” . Eu não atentava para as implicações sexuais de uma pessoa ser viada.  Mas na hora pensei: “Esse primo Serginho é bicha”.   E não era um julgamento moral ou de caráter. Era um jeitão. No meu entendimento de criança a pessoa ser viado era como ser canhoto ou destro, ter óculos ou torcer para o botafogo. Uma coisa que uns caras são. Outros não. Nem atribuía a palavra a alguém que se comportasse como menina. Meninas não eram daquele jeito. O jeito não era compreensivelmente ruim nem bom. Embora as descrições sobre quem é bicha, viado, efeminado, muito sensível...  fossem cheias de um sentido ruim, pra mim ainda eram meio incompreensíveis e sem importância aos seis,sete anos.  Bom, o fato é que primo Serginho já era, à luz do sentido político-social-psíquico e inclusivo de minorias de hoje, um jovem cidadão que usufruía do seu direito sagrado de ser viado.  E a sua construção de personagem era pra mim a definição.  Afinal aquela família orgulhosa e que não era nem mais nem menos preconceituosa que qualquer uma tinha um membro que era algo que não se podia dizer.
O tempo passou e o primo cavou uma forma de aceitação de sua condição na família. Por vocação, esperteza, coação ou um pouco de tudo isso, tornou-se médico.   Médicos são deuses na minha família materna. Naquela família suburbana, que já fora bem mais pobre, a perda de um bebê por problemas pulmonares no passado fez da hipocondria uma tradição quase religiosa.  E quase neste caso é porque está acima do religioso, tocando nele quando suave. Assim o primo compôs ainda melhor o seu personagem social ao criar um “mas”. O estratégico “mas” que todo aquele julgado desviante deve ter e ser reconhecido por quem o julga. A possibilidade de suavizar o esperado estigma.  Ele era efeminado MAS era médico.
Um dia,  na mesma rua, foi lá o Serginho visitar a sua avó.  O meu avô morava ainda do outro lado da rua, quase em frente.  Conta-se que o primo apareceu no seu uniforme de super herói: todo vestido de um branco antártico, com estetoscópio pousado em torno do pescoço e uma maleta que sacramentava o seu ofício contra qualquer dúvida. Não era um enfermeiro. Não era um farmacêutico, não era um vendedor de cuscus. Era um doutor da medicina.  
Naquele dia meu avô passou mal. Teve lá um princípio de qualquer coisa.  Pressão alta ou coisa parecida.  O primo foi chamado às pressas. Não lembro se ele era cardiologista. Mesmo antes da morte da minha avó por infarto, os cardiologistas eram os titãs entre os deuses no Olimpo imaginado pela minha família. Até hoje, minha mãe não entende porque não se resolve a crise dos refugiados na Europa ou alguma guerra étnica, ou a questão palestina ou a descoberta da partícula mãe que pariu o universo. Bastava chamar um cardiologista que ele resolveria tudo.  Bem, o fato é que meu avô se agitava com seu estado e ficava ainda mais irascível quando se sentia mal.   Só a ciência para cumprir a missão de domar a doença e o humor de meu avô.
Serginho devia ser um bom médico. Caprichara para isso.  E não há motivos para não crer que fosse vocacionado para atender emergências. Mas fica por conta da minha imaginação a tensão de tratar de um evento raro: a fragilidade do patriarca durão.  A chance de merecer, aos olhos de todos,  o primeiro uniforme de médico com faixa de marechal, equivalente à túnica do Dalai Lama. A chance de um diagnóstico certeiro e tranquilizador. Considerando como as famílias suburbanas adoram dramas, aquela era a cena que antecede o fim da novela e segura o público angustiado até terminar o comercial dos tapetes Tabacow ou das lojas Ducal.
O primo entra impávido na saleta onde está o avô de camisa listrada e bermudão sendo abanado com uma revista Manchete pela sua nova companheira. Era uma senhora de cadeiras enormes que poderia dar a luz a dois freezers gêmeos.  Como agradava a meu avô.  Aquela pietá dirigida por Fellini aguardava o clímax.  Aí, a maleta reluzente descreve um velocíssimo semicírculo como um sabre jedi até a frente do doutor que a coloca no chão diante de si. A maleta preta podia ser de couro de rinoceronte com costuras em linha feita de hímen de lhama. As alças eram as da Arca da Aliança e o estalo com que se abria soava como o armar da espingarda de John Wayne prestes a varrer do mapa os Incas Venuzianos ou o vilão que mandou para o canavial a Escrava Isaura.  Já durante o pouso da maleta o médico exprime um rosto transfigurado. O lábio se fecha em bico e tenta se alojar junto do nariz. Os olhos se espremem. Tudo num átimo de segundos. E... diante de meu avô aflito, minha avó-drasta mais aflita ainda, da princesa Diana na capa da revista Manchete amarrotada e todos os presentes...  voa para fora da maleta de médico num gesto coreográfico uma saia rodada vermelha e preta com babados.  Serginho se ausenta em consciência e assume uma pomba-gira às gargalhadas.    Meu avô começa a temer que a visão seja o resultado de danos cerebrais capazes de corromper para sempre sua percepção da realidade.   Sua companheira e outros assistentes se organizam para formar uma corte para a entidade. Ela faz a consulta. Decreta que tudo vai ficar bem e o que deve ser cuidado para que tudo continue bem. Meu avô com a mandíbula disposta em um ângulo de 32 graus mensuráveis em transferidor.   E aquele olhar que nele sempre antecedia um brado de palavrão normalmente dito como hino cheio de verbos flexionados em mesóclise.  Mas não diz nada desta vez. Cantoria, dança e ritmo até que a pressão de meu avô passasse a ser a única coisa esperada e normal naquela casa.  A pomba-gira reinou naquela tarde em seus trajes híbridos deste extremo ocidente que era minha rua. Tinha em volta do pescoço ainda o estetoscópio, agora convertido em encharpe, camisa branca de abotoar, no bolso beliscado por caneta dourada o nome do seu cavalo bordado em letra de mão antecedido pelo “Dr”. ...E da cintura para baixo a saia vermelha e preta que girava abraçando as pernas quando o giro do corpo parava diante do velho. Cada vez que estaa história foi lembrada eu imaginei mais helicópteros sobrevoando a casa. A música do plantão do jornal como as trombetas do apocalipse. Era aparentemente a mais caótica situação como ferramenta mística de reparação da saúde e da ordem. O quadro surrealista que nem Dali empapuçado de haiuáscar intravenoso impelido para dentro de si por bomba de bicicleta poderia imaginar.

Pensando bem, talvez primo Serginho não estivesse ausente. Talvez no domínio da entidade que por ele se apresentava estivesse era bem representado.  Talvez primo Serginho nunca tenha dito tão bem o que era.  Era um médico que recebia pomba gira e amava a noite.  A ele e sua entidade o meu respeito.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

O Elevador e a Amazona


_Sobe.
_Bom dia.
_Bom dia
_ 4º.
Silêncio
_5º.
_6º.
_Bom dia.
 Silêncio
 Silêncio
_ Celular tocando.
_Nove.
_Onze.
_Oi. Se cair é por que estou no elevador.  Nem imagino. Fala...
Como casar?! Assim, sem mais nem menos?! Morando?! Onde?
Não, não sabia não. Nunca mais vi ele. Eu? Nem... Olha, tá picotando vai cair. Te ligo depois.
_ 4º.
_ Alô! ...Quando você ia me contar, seu babaca?!
É assim todo dia.  As pessoas parece que escolhem meu carro para descobrir que estão tomando chifre.  Uma vez duas mulheres se pegaram e o cara parecia um cachorro que caiu do caminhão de mudança. Sem saber o que fazer. Homem... homem que é metido a valentão não faz esses escândalos não. Deve ter muito chifrudo que encontra o outro aqui e finge que não.  Fico só imaginando o que acontece depois. A porta fecha e eu engato em outra história. Às vezes fico foleando a Bíblia ou com o fone do celular... Mas não presto muita atenção ao rádio e nem enxergo direito aquelas merdas daquelas letrinhas na Bíblia de bolso. O supervisor é evangélico. Ganhei essa Bíblia de bolso na Central e resolvi andar com ela. Semana passada o Wantuil foi demitido. Andava de guia no pescoço. Diziam que era Ogã. Diziam que o Wantuil comia o Enoque. Enoque é o supervisor.
_5º.
_Tá subindo?
Suspendi o beiço fazendo um arco com a boca apertada, levantei o queixo devagar e depois baixei rápido.
_Vai ser demitido hoje. Todo mundo tá sabendo.
_Foi aquela história do... do...?
_6º.
Porra, por que as pessoas param o elevador pra passar de um andar pra o outro?
Se eu fecho os olhos pra desligar os ouvidos me chamam a atenção os perfumes.  Tem tanto perfume aqui. Daí um incomoda ou agrada e se destaca.  Assim é com as conversas que nunca consigo acompanhar inteiras.  Às vezes tento inventar na minha cabeça como termina quando o povo sai. Faço isso pra sossegar a curiosidade, a aflição que dá, sei lá.
_Ela ficou sabendo como?
_Lógico que alguém falou, né?
_Naquilo ali não tem santa não, Jéssica.
_Mas ela nunca se deu ao respeito. E ela, sabendo disso, contou pra ela lá que fez a caveira dela e dela também.
Tem umas histórias que fica difícil entender. Quando estudei esse negócio de provérbio parece que era errado usar “ela” assim. O “ela” uma hora é uma pessoa, outra hora ela fala uma “ela” que é outra pessoa. Tem de saber provérbio até pra fazer fofoca. Fofoqueira usa esse “ela” que muda de quem se fala pra quem tá ouvindo não entender nada e ficar mais curioso.  Dá vontade de interromper e perguntar _ Ela quem, porra?
Mas as duas podem me responder: “ Você não conhece.” E isso é pior que “não te interessa”.
Mudei de canal antes de chegar ou sair conversa nova no 9º.
_E aí?
_Caralho, num estudei nada.
_Vai cair aquele negócio de tributação... comequié?
O outro espera o complemento que não vem e faz um riso de escárnio meio forçado
_”Regime de tributação”? Sei lá. Caralho, tu tá pior que eu.
_Caralho ele é muito babaca, mermão.
_Caralho. Babaca pra caralho.
_Sabe o que ele fez quando aquela menina moreninha perguntou daquela porra do...? do..?
_Caralho, cara, tu não sabe nada mermo. Quequele fez?
_9º.
_Já é o nove aqui?
Imaginando que eles também não sabem que o nono é o nove, fiz aquela cara com o beiço e o queixo de novo e repeti rápido: _9º.
No fundo dessa conversa tinha outra. Ah, é. Esqueci de dizer que consigo prestar atenção em duas, três...
_Depois você vai fazer o quê?
_Fazer o quê o quê?
_Ah, sei lá. Sair,  tomar um chope. Ligar pro namorado...
_Pra casa.
_ein?
_Vou pra casa. Amanhã ainda é quinta.
_Ah, mas dá pra se distrair. Esperar o trânsito melhorar. O metrô tá menos cheio e depois o ônibus leva menos tempo se você volta uma hora mais tarde. 
Ela fez um muxoxo com um olho fechado e mexendo na bolsa.
_É o namorado?
_Que namorado, garoto? Vê se eu dou essas confianças pra homem mandar na minha vida?
_Então. Você pega o 350 e a gente volta junto. Eu desço ali no Bicão. Olha, vou te contar o que uma conhecida minha fez com o namorado que não deixava ela sair com os colegas do trabalho. Ligava direto. Esperava ela no ponto do ônibus e tudo.
O rapaz olhou rápido de canto de olho pros caras que repetiam palavrão. Achou que eles atrapalhavam o clima do convite justo quando a menina começou a responder com uma frase inteira e uma história podia ser contada. Também detesto quem fala muito palavrão. Mais quem fica repetindo o mesmo. O rapaz cuidava bem das unhas. Tinha aquela coisa de tutano que homem usa sem ser viado, pulseira de correntinha. Cabelo com costeleta feita à régua. Tava ali um cara que precisava agradar.
_ Essa minha conhecida, na verdade, conhecida da minha irmã... Ela um dia disse pro namorado que ia sair cedo e falou pra ele ir buscar ela no trabalho que ela queria fazer uma surpresa. Aí o cara ficou todo animado, né?  Ela pediu pra ele emprestar o cartão dizendo que era pra fazer depilação e clareamento de virilha. O cara, que era um mão de vaca, nem chiou. Deu o cartão. Quando deu cinco horas...
_9º.
_Já é nove aqui?
_Dá licença.
_9º.
_Tamo saindo também.
No fundo uma moça gordinha mexe no celular e ri. É daquelas pessoas que riem mais com os dentes de baixo. Parece que é com medo de borrar o batom. Muita maquiagem pra uma moça nova. Deve ter uns 27,28. Mas se vê que a cara é toda marcada. Sabe aquela bochecha que parece areia mijada?  
Uma senhora se abana com um envelope de exame. Tá fresquinho hoje. Tem o ventilador. Mas a senhora está com calor. Deve estar incomodada por que o ventiladorzinho fica apontado só pra mim.  Sabe-se lá de que que é o exame.
Meu rádio toca Agepê. Nem tinha notado. “Deeeeixa eu te amar/ Faz de conta que sou o primeeeiro/ na beleza desse teu olhar...”
Alguém tem o rádio do celular tão alto que a música escapa pela fresta entre a orelha e o fone:
“Bideee inemoniiii... nã-nanananana nã nãa nãaa...” Sempre gostei do Maicom Jackson. Essa música me lembra aqueles chicletinhos quadradinhos coloridos que a gente enchia a mão e jogava na boca.
Parece que o Maicom Jackson está respondendo o Agepê por que a toada das músicas é parecida.
Esses assuntos recortados, essas histórias que eu tenho que acabar na minha cabeça por que, de verdade, uma pára no 4º, outra no 6º, 7º, quando também entram outras histórias que não vão terminar... Essa rotina tá me deixando com um sistema nervoso demais da conta.
_11º.
Parece que ninguém me ouviu. Ou ouviu e não liga. Ou pode ser que não queiram mesmo parar no décimo primeiro. Quem pediu falou “onze” e não “décimo primeiro”. Vou facilitar:
_Onze.
Sai a moça da maquiagem que tava no celular fingindo que alguém escrevia pra ela. As pessoas pegam o celular quando não têm bem noção do que fazer com os intervalos.
Sai a senhora que se abanava com o exame no espaço pequeno.
Aí vem quem entra.
Parada esperando para entrar tem uma mulher de uns dois metros de cabelo longo laranja. Ela está nua, ri um riso gentil com todos os 300 dentes caninos e segura uma faca de lâmina curva feito bumerangue para frente. Tem às costas um machado preso com uma tira de couro. No couro ainda tem vestígios de pelo do animal de onde foi cortado. O machado tem sangue fresco melado pingando nas penas das asas da mulher. Tem uma pintura que imita pintas de onça entre os seios e no ventre dela. Uma corda trançada na coxa tem uma bolsinha feito uma cesta. Dá pra ver que na cesta tem a mão cortada de um homem. O relógio ainda está no caco de antebraço. O sangue da lâmina da faca está coagulado e é meio azul. Na outra mão ela segura a cabeça de um unicórnio metendo quatro dedos pela boca e agarrando os dentes de cima e com o polegar dentro da narina do bicho.  Por que não segura pelo chifre?
Essa rotina me cansa. Quando vai acontecer alguma coisa nova aqui ?
_Desce.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Das baratas e das memórias picadas


Lista de compras: sabão em pó, amaciante, ração para a gata... Eu andava à noite pela rua esburacada em direção ao supermercado xexelento da minha rua. Um calor danado. Daqueles em que a gente se pega falando um palavrão seguido de um sopro sobre o queixo sem mais nem por que. A calçada _como muitas do Rio de Janeiro_ parece ter sido bombardeada de tão esburacada. Mas oficialmente aquilo é o que se chama aqui de “o asfalto” por oposição à favela. Talvez pela atenção aos buracos eu tenha adquirido o hábito de varrer o chão com os olhos pouco à minha frente quando caminho. Nos dias em que estou animado e mais enérgico varro uns 5 ou 6 metros à frente. Nos dias em que alguma tristeza ou o calor me estreitam os ombros a varredura é mais próxima. Coisa de um metro e meio ou dois.
Nesse dia vi um punhado de papel picado que se espalhou pela calçada. Parecia ter sido atirado do alto, talvez de uma janela pela área em que os pedacinhos se dispersaram. Eram uma ou mais fotos picadas em fragmentos bem pequenos. O autor ou autora do mosaico, além de não querer mais ver quem estava retratado ali, não queria que ninguém mais reconhecesse a pessoa. Era um esquartejamento simbólico. Como todo esquartejamento, aliás. Um ritual de banimento da memória. O ritual deve mesmo ter sido necessário por que, desgraçadamente ou não, a espécie humana não consegue se obrigar a esquecer de algo ou alguém tanto quanto não consegue fazer cócegas em si mesma. Daí o ritual para ter na memória, como concorrente ao objeto que se quer esquecido, a atitude decidida e extrema de retalhar o registro material de uma lembrança. Parei de repassar a lista de compras. Me veio o absurdo de que quando se rasga uma foto é quando a pessoa retratada está mais impressa nos afetos. Quem nunca rasgou ou teve sua foto rasgada? Imaginei a pequena biografia afetiva do esquarteja dor da foto e do esquartejado. O primeiro resolveu mudar de vida e banir alguém que lhe cometeu uma ingratidão, lhe traiu, lhe decepcionou ou não deve mais figurar no álbum de retratos para não gerar constrangimento a um novo afeto. Esta última circunstância, mais embaraçosa para quem a causa de que para o tal novo afeto. O esquartejado aí aparece como a presença incomodativa e não convidada de uma barata no meio da noite. Tá bem, como uma barata a qualquer momento, por que ninguém fica esperando uma barata em nenhuma situação. O fato é que a foto quando inteira e cheia de carinho era uma amuleto para lembrar o que os unia. Quando rasgada perde este caráter por que o amuleto não é mais necessário. O estrago já está feito e o que sobra no íntimo é uma mistura do bem que um dia se quiseram com a mágoa que lhes afasta e também por si lhes une. Num fragmento da foto um olho de pestanas longas e sobrancelha espessa. Não dava para saber se era de homem ou de mulher. Alguém poderia dizer que se livrar de fotos é coisa de mulher. Talvez ninguém saiba sobre os homens por que os homens jogam as suas fotos picadas secretamente pela janela.
Passei a refletir sobre esse paradoxo da memória jogada pela janela e por isso fortalecida. Paradoxos lógicos são bons para superar o calor emburrecente de uma rua suja. Suja inclusive de emoções fotografadas pulverizadas do alheio. No caminho de volta uma barata, justo uma barata passeava ali pelas fotos picadas. Fantasiei um pouco com fragmentos de expressões que a experiência me lembrou: “amor aos pedaços”, doces, baratas gostam de doces... amor aos pedaços viram baratas. Lembrei da lixeira do meu prédio que tem tranca por fora para o lixo não se rebelar e fugir como se fosse barata, reivindicando seu lugar de volta à casa dos moradores...
Pensei nisso enquanto pensei em matar a tal barata ali na minha frente. Me lembrei que a coisa mais fácil do mundo é perseguir e matar uma barata. Baratas têm uma memória de 8 segundos. Se você começar a perseguir uma barata e ela sai do seu campo de ação. È só esperar 8 segundos que ela volta a se expor e pára de fugir. O inseto simplesmente se esquece de que estava sendo perseguido. A barata fugiu quando entendeu minhas intenções assassinas. Eu não esperei. Matei a barata. Matar barata é fácil por que a memória delas não passa dos tais 8 segundos. Mas a minha paciência com barata dura ainda menos.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Eu "Meia" Maluca


Eu meia maluca

Tive um sonho booom...
Saí do trabalho assim que a patroa chegou . Ela normalmente chega muito tarde, diz que vem uma hora mas na verdade nunca se sabe mesmo a que horas chega. Eu fico dando conta da faxina até umas seis. Depois disso só tenho de ficar com a filha dela vendo desenho, jogando joguinho... Mas é chato quando ela demora por que o ônibus na volta fica um inferno. Tem gente que até acha graça da muvuca. Eu não acho não. Aquele ônibus cheio, gente falando palavrão, gente furando fila lá na Central, pivete que passa e rouba a gente no dia do pagamento. Tem colegas minhas que vão naquela lata de sardinha ouvindo besteria o caminho todo. E elas riem, riem... Eu não. Tem mulher que não se dá ao respeito. Tem gente que não se dá ao respeito. Eu prefiro até que nem me notem ali.
Mas eu estava falando da minha patroa pra poder chegar na história do sonho. Bem então é isso: ela demora às vezes liga, ás vezes não liga. Eu não posso é reclamar. Moro em Inhoaíba. Gasto muito de passagem. Não achei nenhum trabalho perto de casa. Aquilo lá é muito atrasado. Bem, se a dona Vera me demite eu saio com uma mão na frente outra atrás. Sem indenização sem nada. Quem mora em Inhoaíba não pode exigir essas coisas de carteira assinada, nem nada. Eu fico na minha. Já fui muito boba antes. Boba de comprar briga, de até bater boca com patroa. Mas isso não faço mais não. Eu era solteira e espivitada. Agora sou solteira e tenho duas filhas pra criar. Pobre é assim: quando tem um tiquinho de juízo e faz de tudo pra evitar filho segura enquanto pode, faz todo tipo de troço. Até paguei o doutor Adalto lá do SUS pra conseguir ligar as trompas. Aí pimba. Um belo dia descubro que joguei dinheiro fora pagando o dr. Adalto. E quando acaba não é um bebê, são duas. E duas meninas. Menina _Deus me perdoe_ é um inferno pra criar. A gente tem de ensinar a não escolher homem errado. Assim que nem o pai delas. Duro é dizer isso e fazer elas pensarem que a mãe delas sabe das coisas. Pois é. O pai das meninas foi embora quando soube que eu estava grávida. Disse que não era dele. Que eu falei que tinha ligado e não ia ter filho... No fim da história disse até que era casado e não podia sustentar duas famílias. Mas eu acho que é mentira. Mulher nenhuma ia querer saber de casar com um homem daquele. ...Só eu. Mas eu era burra. Agora eu sou é gorda. Gorda, com filho e velha tem é que ser esperta. É eu acho que estou bem gorda. Acho também que pareço bem velha. Com 36 parece que tenho mais. Ainda mais quando eu vejo naquelas revistas da dona Vera que as atrizes da novela nunca saem dos 30. Isso quando chegam. Tem mulher ali que é macaca velha, rodada... mas aí faz plástica, lipo, lifting, mais não sei o quê. Mas deixa isso pra lá. Falei de tudo pra contar uma história curtinha de um sonho bom. Daqueles tão bons que a gente tem pena de sair dele. E quando acorda fica se perguntando se valia a pena acordar. Por que dia é tudo igual. Sonho não. Sonho quase sempre é diferente. Te quando é sonho ruim. É ruim mas é diferente. Então é ruim mas é bom, entende? Não entende nem é pra entender. Eu estou dizendo isso não é pra ninguém ler. É pra mim mesma. Então eu entendo. Bom ms e tal sonho, caramba. É o seguinte. Peguei o tal do ônibus. Estava cheio já naquela hora. Eu disse que saí mais cedo? Na verdade menos tarde do que quando a dona Vera demora. E ela demora sempre. Não foi isso que a gente combinou. Que saco, estou eu falando disso de novo. Parece que tem um sururu na minha cabeça. Não prende em nada. Minha cabeça fica voando. Então... No ônibus que estava cheio e seguiu cheio até depois de já ter chegado em Caxias eu consegui um lugarzinho pra sentar. Sentei, então puz a bolsa aqui assim. Me debrucei por cima dela... Eu faço assim por que não gosto de ficar esbarrando, tocando nos outros. E tinha um homem do lado. Eu não gosto de dar confiança. Já falei que estou gordinha. Então precisei me encolher. Ali fiquei entre o homem e a janela... Batia um ventinho pela janela meio aberta do ônibus. A senhora da frente tinha um perfume que eu gosto. De noite nem dá pra ver que a paisagem é tão feia. Daí eu fui sentindo uma coisa boa. O corpo relaxando, amolengando... Dormi. Deve ter sido uns dez, quinze minutos. Mas deu até pra sonhar. E em tempo de sonho parece uma eternidade. Então. Daí eu sonhei que estava dormindo ali mesmo no ônibus. Olha que coisa! Eu sou assim mesmo meio maluca. Eu achava que era meia maluca mas a dona Vera me corrigiu uma vez. Na frente do marido dela. Fiquei com uma vergonha... Mas com mais raiva de mim por que não aprendi antes de pagar aquele mico. Velha, gorda, com duas filhas e falando errado. Já pensou? Pois é, minha filha. Bem, Aí eu sonhei que estava dormindo no ônibus onde eu estava dormindo. Só que tempo de sonho é assim MEIO maluco também. No sonho o ônibus rodava, rodava e me levava de volta ao trabalho no dia seguinte sem eu precisar acordar. Não precisava descer em casa. Não tinha coisa em casa pra fazer. Não precisava dormir pensando em acordar pra por a comida das meninas que vão pra escola e depois passam o dia sozinhas na mão de Deus. Mas aí não tinha casa, não tinha as meninas. Não tinha nem a dona Vera. Não tinha nem porquê de pegar o ônibus. Tinha só o caminho do ônibus que rodava pra eu dormir. É assim. “pra eu dormir”. Eu falava “pra mim dormir”. Mas um dia dona Vera me corrigiu de novo. Será que se me acharem ignorante ela me vai me dispensar? Bem. Vagou lugar ali na frente. E é na janela. Tomara que eu durma e repita o sonho também. Sonho bom. Sonho de ônibus com lugar na janela.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Tiquete refeição


Outro dia chato. Falta de sei lá o quê. Uma música que eu finjo que gosto no rádio. Sei lá, só finjo que não desgosto. Todo mundo que eu conheço acha legal. Eu não. Mas não é a pior coisa que não acho legal e suporto.
Chego no trabalho. E aí, ê aí dos colegas... Muitos colegas. Nenhum amigo. Dos chefes nem um “e aí”. Que se danem. Se fosse chefe saberia me vestir melhor que eles. Aquelas gravatas ruins que já vem com nó... Aqueles ternos beges muquiranas com cotovelo meio encardido. Aquilo faz minha camisa de time comprada na Saara ter uma dignidade especial. "Dignidade" é uma palavra boa de dizer. Mas pra dizer tem que ter os dentes da frente senão o som não sai legal. É assim em toda palavra que tem muito d e muito t. "Dignidade" está escrito na propaganda da firma que vem no contracheque. Aquelas paradas de de dignidade, responsabilidade do social, e o caramba. Me tiraram 19 reais no contracheque. Achei melhor não reclamar. Dig-ni-da-de. Ainda vou achar uma situação pra falar essa porra dessa palavra.
Hora do almoço. A turma vai no “kilo”. Eu gastei os tíquetes pra fazer mercado. A minha velha acha que foi o que sobrou. Que bom que alguém acha que algo me sobra. Acho que dou os tíquetes para a minha mãe para sentir isso.
Marmita morna. Gosto morno. ...Que esfria na boca....
Trabalho chato. Por que eu estou aqui? Será que não tem nada que eu possa fazer feliz? Mas vamos batalhando... O chefe não pode notar que acho tudo sem sentido, uma droga. No trabalho a gente só aprende a se defender dos “colegas”. Falta alguma coisa. Deve estar na gaveta. Tem dia que passa devagar demais. Os colegas gostam de rir dos chefes. Olham pra mim esperando que confirme algo meio engraçado que alguém falou. Eu não. Não gosto dos chefes. Mas sei que não tem graça. Nada tem.
Vou ao banheiro. Essa pausa me faz pensar na falta do meu banheiro. Da minha casa que nem minha é. O que eu estou fazendo aqui? Acabou o mijo, acabou a pausa. Quando ninguém pensa em nada quando mija eu só consigo pensar em mim quando estou mijando. É rápido. Acabou. Acabei.
To com o ombro duro. Meu joelho anda doendo. To ficando velho.
Volto de ônibus. Meio crucificado naquela droga de ferro no meio do ônibus. Todo mundo ali entulhado. Com a mesma, a mesmíssima expressão no rosto. Num ônibus cheio na presidente Vargas às seis da tarde todo mundo fica igual. A igualdade é o ônibus.
Cheguei na rua. Ando um pouco, outra vez “e aí” dos vizinhos. Na subida vem descendo aquela moça branquinha que é da universidade. Tá ajeitando uns papéis, sei lá. Umas coisas. Um dia quis me entrevistar. Disse que depois e indiquei um vizinho que podia falar. Estava apertado pra ir no banheiro, senão até falava. Mas ir no banheiro me faz pensar em mim. Não ia dar.
Minha mãe deve estar lá, esperando os tíquetes que recebi hoje. Vou passar na casa dela antes. Os canas estão na subida. Os caras já me conhecem. Já conhecem todo mundo. Ficam ali na viatura olhando bunda, palitando dente, filando cerveja na barraquinha. Vou aumentar o volume do rádio do celular. Hoje tem uns caras novos descendo a rua. Começaram a correr. Engraçado ver gordo correr. Caraca, que é aquilo? A moça branquinha está agachada atrás duma escada. Acho que tá chorando. Ela tem um nariz pequeno... Tá ligando pra alguém. Os vermes gordos atiram pra todo lado. Um caiu.
Ouvi um créc atrás da orelha. Meus ombros relaxaram. Alguma coisa soprou meus olhos. Acho que o joelho dobrou.
Gosto morno. ...Que esfria na boca.